Por um #8M que se soma às lutas das travestis e mulheres trans 🏳️⚧️
No país que responde pelo maior número de assassinatos de pessoas trans em nível mundial há mais de uma década, a luta contra a violência de gênero também passa pelo combate à transfobia
No Dia Internacional das Mulheres, decidimos aprofundar neste espaço a reflexão sobre o significado de tratar a data no plural. Ao falar sobre travestis e mulheres trans, chamamos a atenção para uma mensagem importante apresentada por diferentes movimentos e organizações feministas: o combate à violência e à desigualdade de gênero.
No país que responde pelo maior número de assassinatos de pessoas trans em nível mundial há mais de uma década, a luta contra a desigualdade e a violência de gênero também passa, portanto, pelo combate à transfobia. Muito embora a origem da data remeta a um contexto onde não era possível identificar ainda a presença de travestis e mulheres trans, compreender o 8 de março como o dia que contemple a luta de todas as mulheres é um esforço importante para que não deixemos de fora mulheres trans, travestis, mulheres negras, mulheres indígenas, mulheres asiáticas, mulheres migrantes, dentre muitas outras.
Por que falar de transfeminismo?
A sequência de relatórios elaborados pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) nos últimos anos a respeito do assasinato de travestis e pessoas trans no Brasil aponta de forma clara que esta não é uma violência ocasional, mas que perpassa a própria construção histórica e social brasileira. Apenas em 2022, foram 131 mortes registradas, número que pode ser ainda maior por conta da subnotificação destes crimes.
Esses números ajudam a entender a necessidade de uma discussão ainda inexistente em espaços feministas brasileiros no começo do século 21 que se voltasse exclusivamente a esses tipos de violência e discriminação. Segundo a pesquisadora Hailey Kaas, no artigo "O que é Transfeminismo? Uma breve introdução", o transfeminismo emerge “como uma corrente feminista voltada às questões das pessoas trans. Frustrades com a falta de visibilidade e até mesmo exclusão dentro do próprio movimento feminista, as pessoas trans se organizam para lutar em prol de sua emancipação e autonomia, frente uma estrutura que mantém essas pessoas à margem".
Além disso, diferentes teóricas transfeministas apontaram nas últimas décadas para a própria gênese do debate sobre o gênero, enfatizando como a categoria surge justamente para questionar não apenas os limites biológicos da noção de “sexo”, como também para criticar própria ideia de que o “sexo” estaria relacionado a uma suposta verdade “natural”, isto é, a um “dado da natureza” dissociado dos aspectos sociais e culturais.
“Historicamente, a compreensão que o feminismo vem apontando é que sexo seria uma relação biológica e gênero seria uma relação cultural. Essa relação acaba nos conduzindo a um binarismo entre cultura e biologia, cultura e natureza. No transfeminismo, o que chamamos de natureza também passa por um processo de construção de sentido a partir da cultura. O que nomeamos biológico também é uma prática discursiva, logo, a biologia não é um dado natural, é uma construção que é perpassada pelas relações de poder", compreende Letícia Nascimento, autora do livro "O que é transfeminismo?", em entrevista à Gênero e Número.
O transfeminismo, assim como os feminismos negros, identificaram que a ideia de um feminismo universal deixava de fora uma série de corpos, trajetórias e especificidades, presentes nas demandas das mulheres negras e das pessoas trans.
"Dessa forma, não encontrando espaço político nem na comunidade gay-lésbica e nem no feminismo tradicional, surge então um movimento auto-organizado que partilha de praticamente todas as ideias feministas tradicionais, e as absorve em prol de políticas trans de emancipação. É importante colocar aqui que o transfeminismo também surgiu da necessidade de se combater o machismo instalado na comunidade trans, através de uma ótica feminista aplicada às questões trans (por isso transfeminismo)", explica Hailey Kaas.
A perspectiva trazida pelo transfeminismo é, portanto, um convite para que somemos esforços contra o mesmo sistema de opressões que recai sobre todas as mulheres, cis ou trans.
Mas, quais as pautas do transfeminismo?
As pautas do transfeminismo são múltiplas. Mas a principal delas consiste na luta contra a transfobia. "Entendemos a transfobia como um vetor específico de opressão que marginaliza e estigmatiza os sujeitos trans em nossa sociedade e tem implicações diretas em todos os âmbitos da vida de uma pessoa trans. O transfeminismo, desta forma, irá denunciar qualquer tipo de discurso que culpabilize a vítima de transfobia", conta a pesquisadora Beatriz Pagliarini Bagagli.
Além disso, a despatologização das identidades trans continua sendo uma das pautas do movimento. Em 2018, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que as identidades trans deixassem de ser consideradas “transtorno de gênero”. Por sua vez, passaram a ser diagnosticadas como incongruência de gênero - uma condição relativa à saúde sexual.
O combate ao transfeminicídio também é uma questão fundamental neste debate. Por anos, entidades nacionais e internacionais apontam o Brasil como o país mais violento no mundo para pessoas trans. E, apesar das recorrências serem grandes, há subnotificações e falta de um sistema nacional que identifique esses padrões de violência contra pessoas trans a fim de desenhar políticas públicas para combatê-las.
Como ficar por dentro do movimento?
Para acompanhar mais sobre o transfeminismo do Brasil, recomendamos conhecer o CPT (Centro de Pesquisa Transfeminista) . Oriundo do site Transfeminismo, espaço pioneiro que há mais de uma década é referência na discussão do movimento no país, o CPT foi inaugurado em dezembro do ano passado. O objetivo da organização é contribuir para a produção de dados e conhecimento sobre transgeneridade, além de fomentar e apoiar pesquisadories trans no Brasil. O CPT também emerge como importante espaço para fortalecer as redes de pesquisa realizadas pela comunidade acadêmica trans. Desde seu lançamento, inclusive, o Centro de Pesquisa Transfeminista se coloca à disposição de quaisquer pesquisadores trans que desejem fazer parte dele.
Outra organização para ficar de olho é a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), uma das mais antigas organizações de travestis e mulheres trans em operação no Brasil, e que tem feito um trabalho determinante para a garantia de direitos e o combate e o monitoramento da violência e dos assassinatos cometidos em razão da transfobia.
Recomendamos também o livro Pedagogias das Travestilidades, de Maria Clara Araújo, que faz o registro da luta do Movimento de Travestis e Mulheres Transexuais no Brasil. A edição tem apresentação de Linn da Quebrada e prefácio da professora Cristina Garcia (PUC-SP). A autora é bacharel em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestranda em Educação (Sociologia da Educação) pela Universidade de São Paulo (FE/USP).
Que datas como o 8 de março permaneçam como oportunidades de reflexão e ampliação das mobilizações políticas, entre elas o feminismo.
Instituto Matizes